Conteúdo atualizado há 11 anos
Uma reflexão de Charles Dias publicado na primeira edição da extinta revista Fotógraphos. Recomendo, por isso resolvi compartilhar o texto. Boa leitura!
* * * * *
Que é a fotografia nas mãos de pessoas comuns, gente como a gente, pessoas que não têm a fotografia como profissão? Que é a fotografia para os fotógrafos amadores hobbistas? Qual a função da fotografia em nossas vidas? Somente um passatempo? Somente um hobby? Uma ferramenta de mudança social? Um sinônimo de status?
Tempos atrás relatei em um editorial do site “Louco por fotografia” um fato que me marcou muito como fotógrafo amador e como pessoa, que me fez questionar a minha relação com a fotografia. Eu estava numa fila dos Correios esperando para despachar um pequeno pacote. Enquanto isso, brincava com uma pequena cârnera Minox 35 GL (35 mm compacta, menor que um maço de cigarros) que um amigo tinha me emprestado. Atrás de mim estava uma mulher com um filho pequeno no colo e, com ela, também uma garotinha de quatro ou cinco anos, muito ativa e curiosa. Notei que a menina olhava, com interesse, eu mexer na câmera. Resolvi mostrar o “brinquedo” para ela, expliquei o que era, mostrei como se olhava pelo visor e tal, deixando que ela brincasse de tirar algumas fotos imaginárias … Ela então se virou para a mãe e disse: “Eu quero uma câmera dessas!”. A mãe nos olhou com um sorriso amarelo e não disse nada… Logo fui chamado para o guichê, despedi-me dela e fui despachar meu pacote. Do guichê pude ouvir a mãe ralhando com a garotinha quanto a ela ter ficado curiosa com o que eu tinha nas mãos, que não era para incomodar estranhos assim e, o pior, “uma máquina de foto é pra rico, esquece disso que não é pra gente !!!”
Que será de nosso país onde uma mãe fica brava porque sua filha é curiosa, porque ela quer conhecer as coisas e porque essa coisa é uma câmera fotográfica??? Não estamos falando sobre algo extraordinariamente caro, complicado ou difícil, mas sim de fotografia, de guardar recordações, de retratar nosso cotidiano, de usar uma forma de arte para nos expressar.
Sempre leio artigos de autoria de fotógrafos amadores e profissionais estrangeiros, principalmente norte-americanos e europeus, em que eles falam que começaram a fotografar com uma cârnera que ganharam dos pais. Acho interessante frases do tipo: “Aos 13 anos, meus pais me deram uma câmera fotográfica de presente de aniversário” ou “Quando tinha 10 anos, minha mãe deixou que eu usasse a câmera fotográfica dela para fotografar o passeio no parque ou a festa de aniversário de um amiguinho”. É interessante como isso é algo cultural, o ato de os pais de passarem algo para os filhos. Não digo que isso torna pais norte-americanos ou europeus melhores que pais brasileiros, mas deixa clara uma imensa diferença entre esses povos, uma diferença cultural. Em nosso país, a maioria dos pais que têm uma câmera fotográfica em casa a esconde de seus filhos e a transforma em algo inacessível com o costumeiro: “Não pode mexer senão quebra” ou suas variações.
Não é à toa que se diz que a cultura é uma das alavancas do desenvolvimento. E se fotografia é cultura, não é também à toa que nossa realidade econômica é pior que a desses países… Vamos ser francos, somos um país de ignorantes!!! E nós, uma camada fina da sociedade mais ou menos imersa na cultura, na arte, na opinião crítica, somos uma exceção.
Fico imaginando que aquela garotinha poderia ser uma grande fotógrafa, uma dançarina, engenheira, escritora, ou bióloga e que faria grandes coisas, no entanto, com uma mãe que responde para ela que “máquina de foto é coisa pra rico, esquece disso que não é pra gente”, um futuro promissor se torna ainda mais difícil. Claro que isso não significa que ela não consiga superar tudo isso e ter um grande futuro, mas tudo se complica ainda mais. Cultura é algo que se passa de pais para filhos, de adultos para crianças, e se não existe essa “educação cultural”, não existe desenvolvimento. Claro que há algum tempo começaram a surgir alguns projetos fotográficos envolvendo voluntários e crianças de comunidades carentes, porém ainda são iniciativas pontuais e isoladas. Além disso, não são só as crianças carentes financeiramente que sofrem esse tipo de “discriminação cultural”, mas também nossos filhos, sobrinhos, pequenos vizinhos, crianças com algum, muito ou todo o conforto. Não há dinheiro que pague um gesto de carinho de um adulto, fotógrafo amador ou profissional, que mostra para uma criança sua câmera, explica como funciona, que deixa claro que a fotografia é algo divertido e não um bicho-de-sete-cabeças.
Olhando esse momento da menininha na fila dos Correios, sinto-me um pouco culpado por não ter sido mais ativo, mais cidadão, de ter dado para aquela garotinha a oportunidade de fotografar. Uma pequena câmera compacta, alguns rolos de filme, processamento e orientação não seriam tão caros, talvez eu pudesse ter sido um voluntário para ensinar fotografia na escola onde ela estuda, talvez eu fizesse a diferença em seu futuro. Mas o que já foi, já foi e fica a lição.. Ainda não fiz nenhum curso para crianças ou ensinei somente uma a usar uma de minhas câmeras, contudo já estou pensando em como fazer e estou aqui, escrevendo para vocês, ou melhor, para sua consciência.
Nós, fotógrafos amadores e profissionais, precisamos ser mais cidadãos e começar a divulgar a cultura fotográfica em nossa sociedade. O Brasil é um país que fotografa pouco, a grande maioria das famílias não se preocupa em fotografar o crescimento dos filhos e o envelhecimento dos pais, as festas e os almoços aos domingos. Eu mesmo tenho pouquíssimas fotos de quando era pequeno, pois minha família achava fotografia bobagem, como muitas e muitas famílias acham. Mesmo nós, fotógrafos amadores e profissionais, costumamos fotografar natureza, lugares, produtos … Mas será que fotografamos nossos amigos? Nossos filhos? Nossos pais? Está na hora de nos mover e divulgar essa paixão pela arte de fotografar, transformar o interesse distante das pessoas em cultura fotográfica, mostrar que a fotografia é muito mais que um passatempo caro, que pode até não ser tão caro assim, tão difícil assim, tão inacessível assim.
Temos de ser fotógrafos cidadão, pois cultura é cidadania e cabe a nós, recobertos por esse verniz de cultura, sermos agentes dessa cidadania.