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Não dá pra pensar em refletir a respeito da fotografia sem lembrar do grande ‘filósofo da imagem’ Boris Kossoy. Revendo algumas coisas que tenho aqui guardadas encontrei uma edição da revista Continuum (uma excelente publicação!) que foi dedicada especialmente à fotografia – todo mês eles definem um tema diferente. Na edição de agosto de 2008 foi publicada uma entrevista que Boris Kossoy deu especialmente à revista.
É sempre muito bom acompanhar as ideias de Kossoy para abrir nossos horizontes do conhecimento fotográfico. Afinal, a fotografia não é apenas uma imagem registrada! Achei muito legal a entrevista e, por isso, vou compartilhá-la com vocês. A leitura é um pouco longa, mas vale muito a pena. Confira, no texto de Mariana Lacerda.
Toda imagem fotográfica guarda uma, duas, três… inúmeras narrativas. Esse é o pensamento que permeia toda a obra de Boris Kossoy, paulista, fotógrafo, professor, cientista social e pioneiro ao traçar uma história para a fotografia brasileira. É dele, por exemplo, o célebre livro Hercule Florence: a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil (Edusp, 3ª edição em 2007), onde conta outra versão para a história da invenção do daguerreótipo – a primeira técnica para “impressão da luz”, anunciada na França, em 1839, e atribuída ao francês Louis Daguerre. Também assina o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: Fotógrafos e Ofício da Fotografia no Brasil 1833-1910 (Instituto Moreira Salles, 2002). Com mais de 40 anos de trajetória profissional, Kossoy esteve à frente de curadorias e hoje é membro do conselho da coleção Pirelli-Masp de fotografia. Seu portfólio inclui imagens nas coleções permanentes do Museu de Arte Moderna, em Nova York, e na Biblioteca Nacional de Paris. Ao longo do tempo, contudo, um único sentimento atravessa todas as suas realizações: a opção pelo fantástico existente em imagens que retratam gestos simples, como uma foto de família e um olhar contido nela.
Paralelo à sua trajetória de historiador da fotografia, existe um trabalho de fotógrafo. O que veio antes?
Antes da fotografia veio o olhar de criança. Uma das fotos da minha última exposição [na Pinacoteca de São Paulo, em 2007, na qual Boris Kossoy refez os seus 40 anos de percurso pela fotografia] era a de um mato capoeira. Percebi que em muitas fotos minhas aparece aquele matinho sujo, assim como surge também a imagem do meu alter ego − que é o doutor Américo, aquele senhor pequenininho. Acho que são exemplos da persistência do olhar. Ou seja, um olhar carregado daquilo que vai sendo colocado dentro do caleidoscópio, esse que a gente carrega em cima do pescoço. Essas imagens vão se fundindo e se repetindo ao longo de minha vida.
E como passam a ganhar significado?
A imagem é diabolicamente divina. Essa é uma conclusão extra-religiosa que faço em relação à fotografia. Porque ela tem um significado para um, e revela algo diferente para outro. Além dos significados que tiveram para o próprio autor da imagem. Toda fotografia é um mundo à parte, que eu chamo de “mundos paralelos”. Esse foi o nome de uma exposição que fiz em 1998 na Bienal de Fotografia de Curitiba, em que dei uma volta para retornar à infância. Aquele matinho, por exemplo, era o olhar das primeiras imagens de que me lembro. Descobri isso muito tempo depois de fotografá-lo em situações distintas. Como também descobri uma cadeia de outros temas que têm relação com meu olhar de criança.
Então você vê a fotografia como uma ferramenta de autoconhecimento?
Sem dúvida. Porque fotografamos ou criamos aquilo que somos, mas às vezes demora muito tempo para descobrirmos o que somos. A vida inteira eu trabalhei com imagens. Tudo começou com a arquitetura, que ajuda a desenvolver muitíssimo a imaginação espacial. Pensar em arquitetura significa imaginar objetos em três dimensões. Eu me apaixonei pela história da fotografia porque visualizava seus personagens e cenários dentro dessa espacialidade. Não era algo abstrato. Não era um número, uma data, como o ano de 1492, por exemplo. Eu imaginava as pessoas, sua coreografia, sabia que eram homens e mulheres, não tinham rabos, não tinham chifres. Porque normalmente as pessoas do presente pensam nas do passado como sendo extraterrestres. E, no entanto, os indivíduos do passado têm seduções, vontades, fome e desejos muito semelhantes aos nossos. Claro, mudam as roupagens, as conversas, em função do conhecimento da época. Mas os personagens são os mesmos. E me interessa muito pensar nesse passado não só no tempo como no espaço. Quando transfiro o olhar sobre qualquer tema antigo para o dia de hoje, estou trabalhando com o envio de um fragmento de mundo, que eu tenho chamado de “mundo portátil”, para o caixãozinho dele, onde permanecerá na eternidade. Chamo isso de “eterno retângulo”.
O que é o “eterno retângulo”?
É um pequeno ensaio que estou escrevendo, uma teoria nova que tenho pensado. Não sei se nova ou velha, mas algo em que tenho refletido muito. Quando você olha o passado com base no presente, repentinamente você já não é mais aquele, você é passado. Não acredito no desaparecimento. Creio que fragmentos de nossas vidas sobram em diferentes lugares: eles observam, viram matéria, viram poeira, entram no concreto de um prédio. São minipartículas de um piso, ou estão na trama de um tecido. E que olhar é esse? Ele existe em uma partícula nossa, nessa poeira. O propósito do olhar é se abrir e por isso ele persiste na eternidade. Tudo se transforma e nada se perde, não é isso? Talvez algumas pessoas pensem ser uma viagem o que estou tentando dizer, “o cara está para lá de Bagdá”. Mas tudo bem, criação é justamente o ato de viajar.
De que forma esse pensamento está presente em sua obra fotográfica?
Bom, se você andasse nas três salas da minha última exposição, iria perceber que existem fotografias em que alguns bichos voltam. Existe um lobo numa fonte no México, e outros bichos, demônios, que reaparecem, vão se repetindo. Não sou terapeuta. Mas, se repetimos temas, é porque aquilo diz algo sobre você mesmo. E isso está na fotografia. Poucos anos atrás descobri uma foto que é uma contraluz da Avenida São João, feita quando eu tinha 14 anos. Reencontrei-a e chorei de emoção. Nem lembrava que ela existia. Sabia que tinha feito fotos quando era garoto, mas não recordava delas. Encontrei essa imagem junto ao negativo. Eu me deslumbrei. Olhando aquela contraluz, percebi que fui um menino muito metido por fotografar dessa maneira. Levei um susto ao me dar conta de que, quando fotografava aquela cena, olhava para o ano de 1955, que, para mim, já é outra encarnação. Ficou claro o porquê de me dedicar à história, à ciência e à arte. E também do porquê de me dedicar à ficção e à “realidade”. “Realidade” sempre entre aspas porque realidade e ficção estão muito próximas.
Como “realidade” e ficção se sobrepõem?
Eu acredito, sim, que a ficção é parte inerente da realidade, sempre. E também é parte inerente da fotografia por natureza. Por mais “documental” que seja a fotografia, existe um dado de ficção em sua construção. Porque ela não é a representação do espaço feito na película, pois não é possível, na fantasia que estou inventando, retirar uma película do acontecimento fotografado, colá-la sobre o suporte e dizer: isso aconteceu. Não, isso não existe. O que acontece é uma mediação. E nem vou falar em enquadramento, filme, filtro, pós-produção, no que foi escrito embaixo, ou no que foi modificado no computador. Quero refletir no fato da construção da perspectiva daquela imagem, ou seja, uma ficção, um sistema de representação visual. Que foi genial e é até hoje porque para a representação figurativa ainda não achamos coisa melhor do que a fotografia, embora ela seja ficcional, um teatro. Como também são os documentários, já que são montados e editados. Porque você está trazendo uma coisa do espaço para o plano. Você tem uma tradução de dimensões. A perspectiva não deixa de ser algo ideológico.
Imagem e memória se confundem?
Penso que a imagem guarda um fragmento de memória que nenhum outro sistema de representação consegue igualar. O cinema, talvez, claro. Se bem que a imagem fotográfica me fascina mais porque ela é um fotograma apenas, sem antes nem depois, é diferente dos filmes, que são movimento, algo que a fotografia não consegue ser. Em compensação, ela tem a cena congelada. E você pode ficar horas e horas olhando para uma imagem e voltar a ela daqui a dez anos. Mas a sua interpretação sobre a mesma cena será outra, pois você já não é a mesma pessoa.
Quando você reencontrou a foto da Avenida São João, de 1955, ela lhe respondeu o porquê da sua dedicação, ao longo dos anos, à história da fotografia?
Não respondeu, mas confirmou muita coisa. Ela é uma perspectiva interessante da Avenida São João. E me liga com uma situação urbana em que já me vi e que me fascinava. Para mim essa avenida era o nosso ponto de referência, o cinema estava ali, tudo estava ali. E me deu prazer ver o lugar de que eu gostava quando tinha aquela idade. Isso tem tudo a ver com a história, com a minha história pessoal, embora a história coletiva também me emocione muito.
Motivo pelo qual você se dedicou à história da fotografia?
Existem muitos porquês, mas o problema é que, quando começamos a racionalizar demais sobre nossos fatos do passado, terminamos por reconstruí-los fazendo com que as coisas se encaixem de forma interessante. Ninguém escapa dessa armadilha. O perigo maior é racionalizar para buscar encaixes perfeitos. Eu fazia fotografia, gostava de história, fazia muito estúdio e retrato, fui um bom retratista. Além disso, a questão da imagem sempre fez parte da minha vida, desde pequeno. Mas a história da fotografia foi um interesse forte que surgiu de uma via direta que é a seguinte: eu me surpreendia com a ausência de uma reflexão sobre ela. Depois, eu me surpreendia com a ausência de uma história da fotografia brasileira. Fora um ou outro ensaio, como o do Gilberto Ferrez, neto do Marc Ferrez (1843-1923), escrito na década de 1940 para uma revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico NacionaI (Iphan), não havia uma incursão histórica sobre a fotografia brasileira. Meu começo no estudo da história coincide muito com o que eu buscava como método para trabalhar com história e com imagem. Os meus livros teóricos nasceram em função disso. Eram perguntas para as quais eu não tinha respostas. E, no meio disso, aconteceu um fenômeno: entrei numa rua e dei de cara com uma história a ser revelada, que foi o episódio Hercule Florence (1804-1879). Essa história tem 35 anos e durante muito tempo fiquei estigmatizado por conta dela, embora sempre tenha tido tantas coisas para dizer. O que me fascina nas reflexões teóricas é a explicação de conceitos e métodos no trabalho prático, pensar em até que ponto os conceitos expressam algo que tenha uma natureza definitiva, que possam ser pensados e aplicados de forma universal.
Que virem partículas, por exemplo?
Sim, que seja eterno, verdadeiro. Não é uma ciência exata. Só a constatação de que existem fatos que se repetem. Era a busca disso que me interessava. Minhas reflexões teóricas buscam a construção do olhar com base em um conceito que chamo “processo de construção de realidade”. Que talvez esteja em um dos meus livros: Os Tempos da Fotografia – O Efêmero e o Perpétuo (Ateliê Editorial, 2007). Porque na fotografia nós construímos realidades. Quando observo o registro da minha mãe falecida há 30 anos, construo uma realidade, tenho lembranças dela. Qualquer imagem que a gente olhe e que diga respeito à nossa vida e família, a outro tempo, a amigos etc. é assim. Mas, quando você não conhece quem está na fotografia, também constrói uma história, uma outra realidade. E, quando busca recuperar histórias do passado por meio da fotografia e pesquisa profundamente aquele contexto da imagem, percebe que existe algo a mais que está ali e que não está nos livros. Tem coisas que estão conosco, que são nossa percepção. Mas tem coisas que estão além da fotografia, que moram no invisível da imagem, nos fatos que levaram alguém num determinado dia a fotografar tal cenário, com tais pessoas.
Que histórias se escondem atrás das imagens?
Esse foi outro conceito que trabalhei, que trata do oculto na imagem. Fotografia é aparência, é organização da aparência. Para entender a foto, saio do nível da aparência e vou buscar camadas mais profundas, quando, então, compreendo certos códigos, olhares que estão ali. Quanto mais você conhece a história, mais entende a imagem. Mas há histórias particulares. E são por essas que mais me interesso, as histórias dos pequenos fatos, como um gesto, um olhar.