Pular para o conteúdo

Um mundo por clique

  • por

Conteúdo atualizado há 11 anos

Um texto muito bom, publicado na revista Continuum, do Itaú Cultural. Nele, André Seiti discute a realidade e demonstra como ela é trabalhada em diferentes temáticas da fotografia. Texto muito bom!

A fotografia como reprodução, representação e invenção da realidade

Em uma das principais cenas da ficção científica Blade Runner (Ridley Scott, 1982), a personagem Rachael mostra ao caçador de androides Deckard uma foto de sua infância. A imagem provaria a existência desse período de sua vida – não fosse um pequeno detalhe: Rachael nunca fora uma criança. Ela era um androide de última geração e toda sua memória havia sido artificialmente fabricada. A fotografia nada mais era do que uma ferramenta forjada para legitimar uma realidade que nunca existiu.

Ao longo de sua história e seguindo inúmeras vertentes, a fotografia serviu para validar – e também questionar – diversas realidades, sejam elas inventadas ou não. Exemplos não faltam. Para mostrar que, em alguns momentos do galope, o cavalo retira as quatro patas do chão, o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge registrou, em 1878, o instante exato em que o animal ficava suspenso no ar. Foi também no século XIX, algumas décadas antes do experimento de Muybridge, que o francês Hippolyte Bayard, numa espécie de fotomanifesto, publicou um autorretrato no qual simulava a própria morte – a nota que acompanhava a foto, inclusive, tinha o teor de um bilhete suicida.

543bg

Reproduzir e representar
Se Bayard inventou uma realidade, Muybridge, por sua vez, a reproduziu como ela é, certo? A resposta não é tão simples quanto parece. O crítico de arte britânico John Berger costuma dizer que a fotografia e a realidade são coisas diferentes. “Entre o momento recolhido na película e o momento presente do olhar que se leva à fotografia, sempre existe um abismo”, afirma. Esse abismo seria provocado pela distância de espaço e de tempo entre a imagem que se vê impressa e o objeto fotografado. Já segundo a filósofa norte-americana Susan Sontag, em seu ensaio Na Caverna de Platão, “embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos”. Por mais fiel que pareça ser ao real, a imagem inevitavelmente sofre a interferência do fotógrafo.

É o que ocorre, por exemplo, no fotojornalismo. “Trabalha-se para fazer uma reprodução de um fato. Porém, como autor, você coloca a sua experiência e o seu olhar, transformando a fotografia em uma representação sua desse fato”, explica o fotojornalista Henrique Manreza, que comanda a Agência 28mm. Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, Georgia Quintas – antropóloga e coordenadora dos bacharelados de fotografia e artes plásticas das Faculdades Integradas Barros Melo – de Olinda – afirma que a relação da fotografia clássica documental ou do fotojornalismo com o tema fotografado resulta tanto em representação quanto em reprodução. “Ela parte de um recorte temporal e espacial e segue a seleção do olhar de quem ‘escolhe’ a cena a ser apreendida. Portanto, ao reproduzir se representa e/ou vice-versa”, explica. “Esses dois aspectos [reprodução e representação] são fortes e presentes em nosso dia a dia”, complementa Manreza. “E, como fotojornalistas, não temos direito nem devemos alterar a realidade, criando algo que não existe.”

A invenção da fotografia
Se, para o fotojornalismo, inventar a realidade seria algo inaceitável, para algumas vertentes da fotografia, como a de arte e parte da documental contemporânea, isso não é problema. “As linhas que definem reprodução, representação e invenção da realidade são bastante tênues”, conta Leo Caobelli, fotógrafo do coletivo Garapa. “A imagem é uma incrível ferramenta de narrativa e muitas vezes, senão todas, nós [do coletivo] participamos dessas histórias”, afirma. “Isso nos transforma em ´inventores de realidade´, pois intervimos e reagimos, além de registrar”. Caobelli reconhece também que a fotografia documental atingiu hoje um estágio “interessante”: “É no encontro entre o documental e o experimental que gostaríamos de estar, mas para isso sabemos que a estrada é longa”.

Um exemplo claro para ilustrar a invenção na fotografia são as fotos de publicidade, que têm o intuito de seduzir o público por meio de realidades extremamente longínquas e, por isso mesmo, inalcançáveis – caso das fotos dos editoriais de moda e de beleza. “É possível utilizar fotografias feitas com o enfoque de reprodução ou representação da realidade em um anúncio; porém a grande maioria é uma invenção”, explica Manreza, que também trabalha com publicidade. “Elas tentam simular o real em um ambiente totalmente controlado pelo fotógrafo, você cria a situação que quiser.”

Retratando a quase verdade
Criar, alterar, simular… Como já foi visto com o falso retrato suicida de Bayard, não é de hoje que a fotografia inventa mundos além do real. “O dadaísmo e o surrealismo romperam, refutaram a realidade de maneira revolucionária. As vanguardas alemãs também deram sua parcela nesse percurso”, explica Georgia. Outro exemplo dado por ela são os retratos – que, ao mesmo tempo que registram a pessoa fotografada, têm a intenção de descrever identidades e discutir papéis sociais. “Nos retratos”, conclui ela, “temos reprodução, representação e invenção da realidade”.

36529025Provavelmente, questionar o que é real seja uma das primeiras coisas que o espectador faz ao se deparar com os autorretratos da fotógrafa e designer Helga Stein. “Se você os chama de autorretratos tem de assumir que já sabe o que é realidade neles”, diz. As imagens de Helga, uma crítica ao consumismo e aos padrões estéticos inatingíveis, têm, de fato, o objetivo de provocar a noção de veracidade. Mas pôr em xeque a realidade, para a fotógrafa, não significa se desprender dela. “Não acredito no conceito de invenção da realidade”, comenta. “Pois a fotografia trabalha com um referente no momento do disparo do obturador. Mesmo que sofra um processo de manipulação bem incisivo, acredito que ainda reste uma relação com esse referente.”

Seja como for, reprodução, representação ou invenção – apenas para citar alguns aspectos dentre os diversos existentes -, a fotografia deu um novo sentido à realidade e ao seu “referente”. Nas palavras de Georgia: “A fotografia foi revista como campo de consciência, de arbitrariedade, de dominação poética dos mecanismos técnicos para a imaginação florescer sem estatutos delimitadores da realidade”. A realidade que, talvez, só se viva na fotografia.

* * *

A arte de fotografar
Dois nomes referenciais da nova geração da arte contemporânea brasileira, Ding Musa e Sofia Borges respondem à questão e discutem o limite entre o real e o fictício.

Para Musa
Minha obra é uma invenção que fala sobre a representação das coisas. Na série My View (2007), por exemplo, eu trabalho com imagens dípticas para desconstruir essa ideia de representação, assim como a ideia de ponto de vista. São imagens que têm uma paisagem ao fundo (janelas, portas, fendas na arquitetura), as quais parecem ser as mesmas, mas não são exatamente. Em outras séries, essa questão aparece de forma diferente. Pode ser um simples deslocamento lateral, como em Displacement 1 e 2 (2007), em que cinco fotos – com os mesmos elementos no plano de fundo e que têm o primeiro plano trocado – são justapostas em uma mesma imagem.

ding-musa

Para Sofia
Minhas fotografias sempre surgem da observação dos lugares, das pessoas e dos objetos que, de uma maneira ou de outra, estão ao meu redor. O real é para mim uma espécie de matéria-prima, e, num primeiro momento, o que faço ao fotografar é justamente recolhê-la para depois observá-la, decantá-la e, por último, construí-la. Não sei bem responder o que há de fantasioso nas minhas imagens, pois elas representam o meu interesse pelas coisas em si. Contudo, nesse processo de decantá-las e construí-las, talvez a realidade das coisas se enfraqueça e os objetos representados se apresentem mais esvaziados. Não sei se isso acontece de fato, mas é o que eu gostaria que acontecesse… que os significados daquilo que fotógrafo se perdessem ou se embaralhassem uns nos outros. Pois é aí que está meu interesse na realidade, no fato de ela ser vazia e, a priori, sem sentido nenhum.

Deixe sua opinião!

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *